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Condição e Natureza Humana

Condição e Natureza Humana

Condição e Natureza Humana

O humano, em seu existir, sempre apresentou-se -- desde épocas remotas até nossos dias -- sob perspectivas diferentes. Desde Sócrates ele tornou-se um thaumaston. Correlativamente, diferentes e inúmeros modos de concebê-lo se sucederam no tempo e coexistiram no espaço nas mais diversificadas culturas.

Por mais variadas formas que tomaram as interrogações, estas podem resumir-se a uma questão básica com duas vertentes: o que é o homem?" e "quem é o homem?", tendo ambas em comum a certeza de o interrogador estar de um modo ou de outro implicado no âmago mesmo da questão. Assim sua forma torna-se "quem sou eu?". Neste círculo da compreensão, onde a relação sujeito-objeto deve receber tratamento peculiar, a expectativa da resposta face à questão se reveste da urgência e da força manifesta na fala da Esfinge: "responde ou morrerás". O enfrentamento da questão como compreensão do sentido passa a ser característica essencial do próprio homem. Vai de seu ser o questionar-se sobre o sentido de seu existir. Este passa a ser o thaumaston.

Reconhecendo-se parte integrante da tríade Eu-Natureza-Outro, a compreensão da natureza (mundo) e do outro articula-se dialeticamente com a compreensão de si. "Quem sou eu?" é a manifestação primeira do homem como questionador, como logon echon (o que tem a palavra). " O que admira quer dar a palavra ao seu objeto: logon didónai, afirma o prof. Stein (l975). E acrescenta, “esta possibilidade de dar palavras, logon didónai, se fundamenta no fato de que ela é primeiro possuída. O homem, no pathos da admiração, é posto em movimento em sua própria essência enquanto é: logon echon (o que tem palavra). " (Stein, 1975, pp. IOO-IOI).

O arcabouço desta palavra originária, ou da linguagem como arché (princípio), onde estão vazadas as relações Eu-Mundo-Outro, definirá a "condição humana" como situação e transcendência. Sobre esta palavra originária que caracteriza o ser humano irá constituir-se, hoje, a linguagem como instrumento de conhecimento e como comunicação.

o início deste século, Max Scheler, tido como o sistematizador da disciplina Antropologia Filosófica no sentido que hoje se lhe dá, refere-se a uma situação de crise devida, de modo eminente, à falta de unidade nas concepções de homem em nossa cultura ocidental, e conseqüente diversidade dos discursos sobre o humano. Diversidade é o diagnóstico; diversidade na história que apresenta as mais variadas concepções de que se tem conhecimento na cultura; e diversidade dos discursos das múltiplas ciências que provocaram a pulverização do "objeto": homem. Mesmo entre as denominadas ciências humanas", por apresentarem facetas peculiares em seus pressupostos epistemológicos e em seus objetivos, parece difícil uma articulação conciliatória.

O que para muitos é uma riqueza --essa pluriversidade -- Max Scheler vê nesse fato uma situação de crise. De fato, inúmeras concepções e idéias de homem povoam nossa história. As filosofias, as ciências exatas e as ciências humanas (desde o séc. XIX) sempre se voltaram para esta questão. Muitas filosofias apresentaram mesmo a "teoria do homem" como a medula de seus sistemas. O prof. Lima Vaz refere-se em sua citada obra à proposta de A. Diemer de uma Antropoteoria "tendo como objeto as imagens do homem difusas na cultura e que se inspiram oras nas ciências hermenêuticas, ora nas ciências empírico-formais." (Lima Vaz, 199 1, vol. I, p. I I).

Na realidade, pelas ciências conhecemos diversas facetas dos "homines": homo sapiens, homo loquax, homo ludens, homo socialis, homo economicus, homo religiosus, homo cyberneticus e, recentemente, homo symbioticus! O que isso nos ensina? O que a história nos revela? Não será algo bem simples: que a idéia de homem é pluriversal? Por quê razão deve-se buscar uma dimensão que fundasse a unidade para além das concepções diversas? É possível a constituição de uma idéia universal de homem? Para resolver qual tipo de problema? Tais são questões que merecem nossa atenção. A busca de uma idéia unitária não se faz hoje sem dificuldades.

Nas sendas de Max Scheler, alguns entendem que a tarefa de uma Antropologia Filosófica consistiria em elaborar uma idéia unitária de homem com a manifesta pretensão de se erigir como logos explicativo e fundante das diversas concepções sobre as manifestações do existir humano. O “ objeto” homem desdobra-se em múltiplas direções. "A Antropologia Filosófica, afirma Lima Vaz, se propõe encontrar o centro conceptual que unifique as múltiplas linhas de explicação do fenômeno humano e no qual se inscrevam as categorias fundamentais que venham a constituir o discurso filosófico sobre o ser do homem ou constituam a Antropologia como antologia." (Lima Vaz, 1991, vol.l,

A história da filosofia nos mostra que a idéia unitária foi também constituída, elaborada por filósofos para fazer frente a determinados problemas, e tal posição coexistia com outras concepções divergentes que antecederam ou que se seguiram. Trata-se, então, de mais uma concepção ao lado de outras. Pode-se perguntar: por quê razão dar primazia a esta em vez de qualquer outra? A que problema se defronta a resposta que se apresenta como a busca da essência-universal e necessária -- de homem? Deve mesmo a Antropologia Filosófica defrontar-se com a questão da "natureza humana", da essência humana? Responder à questão: "quem sou eu?" estabelecendo a essência do homem, não pode parecer, hoje, uma pretensão desmesurada e até anacrônica face à "condição humana" (praxis) e diante da realidade das ciências humanas (teoria)? Quer me parecer que a Antropologia Filosófica deve voltar-se sobretudo para a questão: que vamos fazer do homem? De posse de uma idéia unitária de homem, isso nos garantiria a superação da crise à qual, segundo Max Scheler, deveria estar sensível a Antropologia filosófica face aos diversos discursos e saberes novos sobre o homem e que nossa história recente nos revela? Repito, que problema seria solucionado com a constituição de uma idéia unitária que subsumisse todas as diversas concepções através da história? E mais, como se constituiria tal idéia unitária? A constituição desse "universal" que representa todos os homens no Homem se daria em detrimento das condições históricas particulares? Que tipo de tipo de “ponto de junção" seria adequado e eficaz para efetivar tal articulação entre a idéia universal e as particularidades?

Ademais, uma crise é para ser superada? O que é crise? O que significa e implica uma superação? Ou a crise denota "dar razão de" (logon didonai), empreendimento singular da tarefa filosófica? Não seria a crise a situação normal e não-crise a exceção? No plano humano -- é o que nos interessa quando tentamos "pensar a condição humana", tal como nos sugere Hannah Arendt -- a própria concepção ontológica do homem, vale dizer, a compreensão do ser humano vazada em categorias universais não é ela própria uma criação da cultura humana, da cultura filosófica?

Pode-se objetar que o fato de se afirmar que o homem, na história justamente por reconhecer-se histórico constrói a cultura é uma posição reducionista (historicista). Como entender a concepção que pretende atribuir ao homem uma essência, ou constituir uma idéia unitária do homem?

Platão, em sua metafísica, tentou evitar a diversidade das aparências e o problema da mudança com a teoria das Idéias e com sua teoria dos modelos: cada ente do mundo sensível deve corresponder a uma idéia, no mundo ideal, garantia de verdade. O homem concreto deste mundo sensível deve corresponder ao modelo de homem no mundo das idéias. Assim à essência (eidos) de homem correspondem todos os homens como cópias que correspondem a seu modelo. Estaria garantida a unidade, a idéia seria garantia da unidade. Só a idéia é verdadeira. O problema foi solucionado. A metafísica de Platão, com seu mundo sensível e o mundo ideal não é uma criação (genial por sinal) no universo da cultura humana? Platão não tencionava, talvez, encontrar uma invariante, a natureza humana, que perdurasse na história não só como evento mas como narração?

Qual a razão de ser da "idéia unitária"? Exigência de sistema -- como arranjo ou arquitetônica de conceitos --, que torna imediatamente compatíveis e compossíveis todos os aspectos da experiência" (Merleau-Ponty, 1966, p. 166)? Ou uma exigência de se encontrar um fundamento absoluto? "Que haja ou não, afirma Merleau-Ponty, um pensamento absoluto e, em cada problema prático, uma avaliação absoluta, não disponho para julgar senão de opiniões minhas, que são passíveis de erro, por mais criteriosamente que eu as discuta". (Merleau-Ponty, 1966, p. 166). E, prossegue o filósofo, "quando não é inútil, o recurso a um fundamento absoluto destroi aquilo mesmo que deve fundar". (Merleau-Ponty, 1966, p. 166).

A "condição humana" hoje impõe-se, como questão, à nossa reflexão filosófica, assim como no passado se impôs a ,,natureza humana" ou a questão "idéia" de homem. A própria historicidade do humano reconhecida de modo marcante desde Hegel até nossos dias, não se estende também às concepções científicas nos dando a entender que a própria concepção essencialista do homem deva passar pelo escrutínio crítico da reflexão? Aí reside para a filosofia a autêntica "crise" (krinein). Diante das mais diversas ciências que tomam o homem como " objeto" de investigação, a tarefa de uma Antropologia filosófica seria a de apresentar uma idéia unitária de homem? Ou, ao contrário, não se trataria, diante da fertilidade do poder criador do homem (cultura) de uma situação de diversidade essencial, de uma "pluriversidade" gerando um campo de debate onde inúmeras interpretações se fertilizam reciprocamente? O que uma ou mais concepções revelam? O que uma antropoteoria apresenta numa determinada época? Não são a própria condição humana, as experiências vivas, concretas, de seres históricos, sempre diversas? Ou uma ficção científica? No passado, falava-se de utopia e não de ficção científica. A utopia "desempenhava o papel de modelo social cuja finalidade e irrealidade era freqüentemente aceita." (Schaff, 1991, p. 154). E na "condição humana" é o homem (são os homens) que se mostram como ser situado no mundo. E "é diante de nós, afirma Merleau-Ponty, na coisa onde nos coloca nossa percepção, no diálogo onde nossa experiência do outro nos lança por um movimento do qual não conhecemos ainda toda a elasticidade e toda força, que se encontra o germe da universalidade ou a 'luz natural' sem os quais não haveria conhecimento. (Merleau-Ponty, 1966, p. 163).

Qual, então, a tarefa da Antropologia filosófica numa época de exuberante diversidade e plasticidade das ciências humanas? Reapresentar uma concepção metafísica que resgate a idéia unitária? Como conciliar um tal discurso com os discursos científicos das ciências tanto as exatas ou empírico-formais, quanto as hermenêuticas? Como poderíamos pensá-las, em sua articulação, as diversas concepções e perspectivas sob as quais se revela o humano através da história? Como articular as ciências e a filosofia em seus discursos sobre o humano? MerleauPonty refere-se a uma lei da cultura segundo a qual esta só progride obliquamente, isto é, "cada idéia nova tornando-se após aquele que a instituiu outra coisa do que nele era." (MerleauPonty, s/d, p. 341). E, afirma o filósofo nesse seu ensaio "0 homem e a adversidade", "um homem não pode receber uma herança de idéias sem a transformar pelo próprio fato de que dela toma conhecimento, sem lhe injetar a sua própria maneira de ser, e sempre outra." (Merleau-Ponty, s.d, p. 341). Deve-se reconhecer um avanço nas ciências humanas na ordem da especialização e do alargamento de novas questões. A sociedade informática (Adam Schaff) lança, hoje, contundentes desafios à nossa capacidade de reflexão. Diante das velozes e profundas mudanças de ordem econômica, social, cultural e política, o indivíduo vê transfigurar-se a sua "condição". como "homo autocreator" na expressão de Adam Schaff, ele busca para si novo sentido da vida e novos valores para orientar sua ação. Merleau-Ponty (s/d), em seu ensaio citado acima, quase nostálgico, afirma: " Pomo-nos, por vezes, a ponderar o que poderiam ter sido a cultura, a vida literária, o ensino se todos aqueles que nisso participam, tendo rejeitado os ídolos uma vez por todas, se entregassem ao prazer de refletir em conjunto..." (p. 369). O que me incômoda nesse texto de Merleau-Ponty são as reticências!

A frase truncada por uma força desconhecida e poderosa, tal como um sonho que se desfaz ao se despertar bruscamente. De fato, o próprio MerleauPonty (s/d), nos desperta, ao afirmar em seguida, numa expressão tão seca quanto enigmática, sem explicações posteriores, quase um lamento: "Mas esse sonho não é razoável." (p. 369).

Diante disso, que sentido teria, hoje para nós, uma idéia unitária de Homem ,idéia essa proposta como solução a um determinado problema pela metafísica platônica? Esse problema foi essencial em determinado momento, para a reflexão filosófica. Ainda Merleau-Ponty (s/d) nos lembra que: "0 movimento das idéias só chega a descobrir verdades ao responder a alguma pulsação da vida interindividual, e toda mudança no conhecimento do homem tem nele relação com uma nova maneira de exercer sua existência (p. 342). Merleau-Ponty vê nas idéias uma volubilidade constante que as transforma "à medida que nascem". As idéias de homem transformam-se, pois, a situação humana se modifica. "Se o homem é o ser que não se contenta em coincidir consigo, como uma coisa, mas que se representa a si mesmo, se vê, se imagina, se dá de si mesmo símbolos, rigorosos ou fantásticos, é evidente que em contrapartida, toda mudança na representação do homem traduz uma mudança no próprio homem" (Merleau-Ponty, s/d, p. 342).

O homem, ser não coincidente consigo, tal uma coisa, ser inconcluso, viajante, situado mas transcendendo-se sem cessar; ser único capaz de se representar, ser simbólico. Merleau-Ponty vê como evidente a interelação entre autorepresentação e o próprio ser do homem como existente histórico e social. Idéia e situação concreta refletindo-se dialeticamente. Homem situado, eis sua situação originária, condição que o leva a questionar-se como existente. O que é existir? "A existência, afirma MerleauPonty (l966), é o movimento pelo qual o homem está no mundo engaja-se numa situação física e social que se transforma no seu ponto de vista sobre o mundo."(p-125). Situação física, vale dizer, o homem defronta-se com objetos – os pragmata -- frutos de sua póiesis , as coisas seladas com sentido pelo poder significante dessa poiesis, desse operar. Recupera importância, hoje, a questão da relação do homem com a natureza. Serge Moscovici (l975) já nos alertara, ao afirmar: "tudo nos leva a pôr fim à visão de uma natureza não humana e dum homem não natural." (p. 13). Situação social vale dizer, o homem encontra-se com o outro, no face a face, instaurando a trama social, encontro vazado pela sua praxis, por sua ação. Vida no diálogo dirá Martin Buber. Ser no mundo, "nossos pensamentos, nossas paixões, inquietações giram em torno de coisas percebidas" (Merleau-Ponty, 1966, p. 127). Nossa consciência intencional, voltada para o outro que ela mesma, o diferente; tal movimento lhe é essencial, e é através dele -- como intencionalidade -- que a consciência busca uma "estabilidade que lhe faz falta. " (idem).

Trata-se de elaborar um conceito de humano. Se tomarmos como ponto de partida o empírico, o caminho a seguir é destacar pela observação os traços que de certo modo especificam o ser humano. Poderíamos tomar, por ex., a linguagem, a fabricação de utensílios, a capacidade de significação, a afetividade. Enfrentamos, no entanto, um problema: como detectar um traço como peculiar exclusivamente ao humano? Em outros termos, como afirmar que tal traço só se revela no grupo humano e em cada indivíduo desse grupo? Impõe-se então, uma assinalação que permita assegurar que tal indivíduo responde à caracterização de humano, pertence ao grupo humano. Pode-se entrar num beco sem saída. Apela-se, então, a um aspecto não empírico, isto é, à via reflexiva. Construir um conceito de humano reflexivamente significa partir do fenômeno humano em sua auto-mostração e daí elaborar sua estrutura constitutiva. Outro problema surge; este esforço reflexivo é, por sua vez, uma atividade do humano. Isso implica, então, que se lhe reconheça a possibilidade de autocompreensão que viabiliza qualquer explicitação de conceitos articuladamente ordenados. Admite-se, assim, a possibilidade de uma pre-comprensão, tida como elemento constitutivo do ser humano que pode tornar-se patente no discurso através da reflexão. Em outros termos, o sujeito humano como possuidor da palavra -- logon echon -- expressa por esta palavra uma auto-apreensão considerada um dos elementos constitutivos de seu próprio existir. Tal auto-apreensão não é mera intuição, mas uma decifração, uma hermenêutica. Tal auto-apreensão interpretativa alia-se a uma auto-avaliação. Isso quer dizer que a compreensão implica um posicionar-se frente a si próprio. O que o sujeito "diz" ao auto-apreender-se relaciona-se dialeticamente, como o próprio existir, com aquilo no que ele se transforma ao existir. Temos assim um existir concreto, efetivo e a constituição de um conceito do humano -- e uma hermenêutica do existir humano. As condições do existir afetam a auto-apreensão -- pre-refiexiva -- desse existir e deverão igualmente afetar a reflexão, ou a auto-apreensão reflexiva do sujeito humano. Dentre estas condições originárias, a historicidade. Isso significa que a auto-apreensão não procede à maneira de uma posse imediata realizada uma vez por todas de uma "essência" homem, uma apreensão fora do tempo. O existir se mostra, em sua constituição, como fluxo significativo de eventos -- é a condição humana histórica --, do mesmo modo a reflexão é um processo de reapropriação e de reavaliação interpretativa contínuas abrindo sempre novas possibilidades de compreensão. Como enigma prático o existir vai, em sua dinâmica própria, revelando-se sob novos aspectos, buscando para si sempre novas conformações. A historicidade é, assim, constitutiva tanto do existir quanto da elucidação interpretativa desse existir.

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© 2007 - Produzido por Profª. Ms. Cléa Gois e Silva